terça-feira, 23 de junho de 2015

Lenda dos Quatro Irmãos

Publicada por A.Mendes



Para lembrar parte da História de Sande S. Martinho, voltamos a publicar a Lenda dos Quatro Irmãos.


Lenda dos Quatro Irmãos

APL 2719
Eram quatro irmãos. Fortes e belos. E amigos. Como não se conheciam outros. Quatro irmãos, órfãos de pai e mãe. Mas tão unidos que serviam de exemplo. Exemplo de lealdade e de compreensão.
Pois os quatro irmãos viviam ali, na freguesia de Sande, no cenário paradisíaco do Minho, e andavam sempre juntos. Um dia, o mais velho disse para os outros três:
— Rapazes! Vamos hoje à Feira Grande... Já tenho o carro aparelhado.
Voltou-se para o mais novo.
— Tu, arranja o farnel!... Leva bastante comida, hem! Vamos lá passar todo o dia e talvez mesmo um bocado da noite.
Depois dirigiu-se aos outros dois:
— E vocês preparem mantas para o regresso. Podemos voltar tarde e é capaz de arrefecer. Temos de ter cautela com a saúde!
Não tardaram a ser cumpridas as ordens do irmão mais velho. Este esfregou as mãos, jubilosamente.
— Assim, até apetece... Quando nós, os quatro irmãos, nos metemos ao trabalho, tudo se faz num instante!
Riram todos. Quatro gargalhadas frescas e sadias.
Apontando o carro já preparado para a viagem, o irmão mais velho acentuou:
— Vai ser um dia bem passado, lá isso vai!... Ou muito me engano, ou a Feira Grande este ano subirá de fama nas redondezas!
Os outros três corroboraram logo:
— Claro! Nós somos bem conhecidos e já nos esperam com toda a certeza!
— Seremos mais uma vez a grande atracção da feira, vocês vão ver!
— Quem é que pode resistir à boa amizade de nós quatro?...
E os quatro irmãos tomaram os seus lugares no carro e abalaram de corrida para a Feira Grande.
Tudo se passou tal como eles pensavam. A certa altura, tinham-se transformado nos heróis da Feira Grande. Quatro heróis. Sempre juntos, sempre amigos!
Porém, a multidão foi crescendo, aumentando, e acabou por separá-los, mau grado deles.
O mais novo dos quatro irmãos viu-se de súbito diante duma jovem de extraordinária formosura. Pareceu um pouco aturdido. Não se sentia bem. Faltava-lhe a companhia dos outros três. E tentou continuar à procura deles. Mas a jovem formosa cortou-lhe a passagem, olhou-o bem de frente e disse sorrindo:
— Escusais de pensar encontrar agora os vossos irmãos.
E acentuando o riso e o olhar:
— Fui eu própria que vos separei.
O mais novo dos quatro reflectiu primeiro surpresa, depois curiosidade.
— Vós, Senhora?... Mas para quê?... Por que motivo?
Ela inclinou-se para a frente. O seu perfume perturbou-o.
— Não gosto de concorrentes... Até à vossa chegada, era eu a rainha da festa!
Foi a vez do jovem sorrir.
— E continuais a ser, sem dúvida alguma…
Depois, talvez arrastado pelo perfume que aspirava, prosseguiu:
— A vossa beleza, Senhora, é superior a tudo quanto nos rodeia!
Ela meneou os seus belos cabelos negros, num ar de graça.
— Obrigada pelo madrigal!... Já vejo que sois poeta!
O rapaz começou a sentir-se mais à vontade.
— Se poesia se pode chamar à verdade, Senhora... Então, sim, sou poeta para cantar a vossa formosura...
Sem querer (ou talvez não) as mãos dela tocaram as mãos dele.
— Deveras me lisonjeais com tais palavras... Embora ainda tão novo, já sabeis falar muito bem!
O seu olhar tornou-se muito triste.
— Mas serei eu merecedora de tanta atenção?...
O mais novo dos quatro irmãos empertigou-se. Ganhou figura.
— Digo-vos mais, Senhora… Se vós quisésseis…
— Se eu quisesse?...
— Poderíamos ser felizes!
Calaram-se. Ela, a meditar. Ele, surpreendido com a ousadia das suas próprias palavras. E ainda desta vez foi a jovem bela e estranha a primeira a falar.
— Que dirão os vossos irmãos… quando souberem do nosso encontro?
Ele pareceu cair do sonho na realidade. Teve um movimento brusco de enervamento, a traduzir íntima inquietação.
— Tendes razão, Senhora... Preciso de falar imediatamente com os meus irmãos.
E agora, atrevidamente, foi o rapaz quem segurou as mãos dela, apertando-as nas suas. Com a violência do amor da juventude.
— Senhora, por tudo vos peço que não vos afasteis daqui... Eu voltarei em breve, para ficarmos juntos até a feira acabar!
Multiplicando-se em esforços, o mais novo dos quatro irmãos foi rompendo por entre a multidão, até que finalmente conseguiu encontrar os outros.
Ofegante, correu para eles.
— Irmãos!... Irmãos!... Ainda bem que os encontrei!
O mais velho fitou-o. Curioso e inquieto. Talvez desconfiado.
— Que se passa? Que tens tu?
Então o outro, lentamente, olhou os três, um por um, e disse devagar, silabando bem para que ouvissem melhor.
— Apaixonei-me!
Houve gargalhadas. Mas gargalhadas diferentes. Conforme as reacções de cada um.
— Deves ter bebido, com certeza!
— Apaixonado? Por alguma rapariguita da tua idade?
— Que partida é essa que tu nos queres pregar?
Mas, sem fazer caso, nem da troça, nem do desdém, nem da descrença, o mais novo dos quatro contou o seu maravilhoso encontro com a jovem formosa.
Os comentários choveram imediatamente:
— Se ela é assim, eu também a quero ver!
— Primeiro estou eu, que sou mais velho do que tu!
— Isso não interessa... Quem chegar primeiro é que vence!
— Porque não a trouxeste contigo?
— Foste um parvo! A esta hora já fugiu...
— Eu vou procurá-la!
— Nada disso... Quem vai sou eu!
De repente, o irmão mais velho resolveu impôr a sua autoridade. Pela primeira vez na vida dos quatros irmãos.
— Calem-se! Sou eu o mais velho de todos... Portanto sou eu que vou falar com a tal jovem... Depois lhes direi a minha opinião.
Simplesmente, tal como se conta, ele esqueceu-se de perguntar qual o local onde a rapariga ficara. E, assim, teve de percorrer a Feira Grande em várias direcções, sem que a descobrisse.
Já estava prestes a desistir, quando ouviu alguém rir mesmo junto de si. Voltou-se. Era uma rapariga estranhamente bela.
— Não me digais que sois vós o tal irmão mais velho que anda à minha procura...
Ele suspirou. Encontrara-a, finalmente! E confessou:
— Sou eu, sim... E tenho muito prazer em verificar que o meu irmão mais novo falou verdade!
Ela tornou a rir. Um riso cristalino mas esquisito…
— Perdoai, Senhora… Posso saber porque razão estais tão alegre?
Ela envolveu-o num olhar meigo e perturbador. Incómodo também.
— Estou a rir… porque já todos passaram por aqui... Os outros vossos três irmãos.
— Eles fizeram isso?
— E porque não?
As duas perguntas quase se chocaram. Depois o irmão mais velho tentou esclarecer:
— Não o deviam ter feito... Sabiam que eu tinha vindo precisamente à vossa procura... Para falar primeiro convosco, Senhora!... Eu tenho essa primazia. Sou o mais velho dos quatro!
Os olhos dela semicerraram-se, num olhar felino.
— Pois escutai, então... Eles passaram por aqui... e estão apaixonados por mim!
Seria um desafio? Ele assim o entendeu. E não hesitou na resposta:
— Pior para eles!... Só eu, Senhora, tenho direito ao vosso amor!
A surpresa pareceu estampar-se no rosto da rapariga. Surpresa sincera. Surpresa grande.
— Como? Que dizeis?... Tendes o direito ao meu amor? Porquê?...
Ele compreendeu que se excedera. Procurou adoçar a explicação:
— Bem vedes, Senhora… Sou o mais velho dos quatro… O mais experiente... O que mais vos pode oferecer... Os outros dependem de mim... Entendeis-me, não é assim? Como mais velho, devo ter sempre a prioridade!
Ela pareceu não se conformar.
— Enganais-vos. Em amor, não há prioridade. Só eu posso decidir. Ouvis bem? Só eu quero decidir!
O homem achou melhor não prolongar a discussão. E limitou-se a perguntar:
— Se assim é… que decidis?
Altiva, mais bela do que nunca, a estranha desconhecida ditou então ao vento a sua resposta, como se o vento levasse as palavras para a eternidade:
— Quereis saber o que eu disse aos vossos três irmãos?... Escutai, pois: Casarei com aquele que entre vós for o mais valente e o mais forte!
Agora foi ele a rir. Um riso de triunfo.
— Mas, Senhora, eu sou tudo isso!
E logo ela, num ar gaiato e provocante, inquiriu:
— Como o provais?...
Diante da falta de resposta, continuou:
— Cada um dos vossos três irmãos afirmou também que era o mais forte e o mais valente!
— Mas eu sou o mais velho, Senhora!
Ela encolheu os ombros, espicaçando-lhe o brio.
— Isso nada prova!
O homem agarrou-a pelos ombros, numa decisão súbita.
— Que desejais?
E a rapariga, libertando-se sem grande esforço, acentuou pausadamente:
— Já que me quereis... é preciso que os quatro lutem entre si, até que um fique vencedor dos outros três... Esse será o mais valente e o mais forte. E esse será também o que me conquistará!
O mais velho dos quatro baixou a cabeça. Parecia vergado por um peso enorme. Talvez o peso da própria consciência.
— Senhora, o que pedis é realmente terrível!... Assim se destruirá para sempre a amizade dos quatro irmãos... Uma amizade que vale como exemplo, Senhora!
A resposta dela foi cruel, mas excitante:
— Eu só poderei pertencer a um de vós… e não aos quatro! Não pensais assim?
O homem hesitou ainda, antes de falar. Por fim, as palavras saíram em voz soturna:
— Pois será satisfeito o vosso desejo, senhora... Vou à procura dos meus irmãos!
Mas logo a jovem formosa, intencionalmente aproximou-se dele e apontou para bem perto.
— Não vos canseis... Eles já estão à vossa espera, lá em baixo...

Foi um encontro brutal. Os quatro irmãos (antigamente tão amigos e unidos, como outros não havia) olhavam-se agora cheios de rancor.
Pela primeira vez nascera o ódio entre eles. Um teria de matar os outros, para mostrar que era o mais forte e o mais valente. E conquistar aquela mulher estranhamente bela, que os olhava lá de cima, como que envolta numa auréola de luz. De luz ou de fogo?...
A luta começou. Luta de vida ou de morte. De qualquer modo, luta de tragédia, entre quatro irmãos que até bem pouco antes eram exemplo de compreensão e lealdade!
O mais velho foi afinal o primeiro a sucumbir... Depois outro... E logo outro... Por prodígio, aquele que conseguira resistir até ao fim era o mais novo. Mas também pouco lhe restava de vida. Ele bem o compreendeu, ao olhar os corpos dos irmãos caídos por terra.
E então, sem voltar a olhar sequer lá para o cimo, onde estava a mulher desejada, começou a arrastar-se, com as poucas forças que lhe restavam, a caminho da igrejinha que ficava próximo dali...
Foi desse modo que lá conseguiu chegar. Esvaindo-se em sangue. Morrendo aos poucos.
Quis levantar-se, mas caiu nos braços do prior.
— Padre, meu bom padre… ajudai-me!
O sacerdote impressionou-se.
— Meus Deus! Nesse estado… Mas que aconteceu?
Em voz agonizante, mal se ouvindo por vezes, o pobre rapaz, único sobrevivente dos quatro irmãos, contou a sua história triste. Triste e dolorosa.
O padre benzeu-se rapidamente e benzeu o moribundo.
— Meu pobre filho... Tu e os teus irmãos foram certamente enganados pelo Demónio, na figura de uma mulher perversa...
E suspirando, de olhos erguidos ao céu:
— Meus Deus, fazei que ao menos se possam salvar as suas almas!
Com muito custo, o sacerdote conseguiu levar o rapaz agonizante ao local onde se desenrolara a terrível e singular batalha. Mas, chegados aí o jovem não resistiu mais. Tombou também para sempre, ao lado dos outros. De novo estavam juntos, os quatro irmãos!
Lá os enterrou, o bom sacerdote, colocando-os lado a lado, e rezando-lhes as últimas orações, para que as almas não se perdessem.
E fosse pelo que fosse, a verdade é que sobre a campa de cada um dos quatro irmãos surgiu, mais tarde, um penedo, que passou a marcar para o futuro a triste sepultura…
E a povoação que depois se ergueu nesse mesmo local ficou a denominar-se a Terra dos Quatro Irmãos. E, mais modernamente, apenas Quatro Irmãos.
Fonte BiblioMARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 241-246
Place of collectionSande (São Martinho)GUIMARÃES, BRAGA
Narrativa