A lenda dos Quatro Irmãos


Fonte: «Ao Compasso das Semanas - crónicas de Braga»  - Aníbal Mendonça

Tem passado de geração em geração, decerto cada vez mais esfumada nos seus contornos luminosos à medida que o tempo a vai gastando no seu giro lento,
esta formosa lenda dos quatro irmãos, simples e ingênua tela engenhosamente composta pela fantasia popular. Há nela o aroma vivo do rosmaninho e o frêmito incontido das paixões que só terminam na morte, quando a fatalidade rasga os últimos véus da esperança.
  
É aqui perto de Braga, quase a um tiro de espingarda, no caminho para Guimarães, nas faldas da Serra da Falperra, com a cercadura duma paisagem viridente de córregos e veigas, sob o banho duma luz discreta, coada através de mil copas erguendo—se e cruzando-se. Pelo espaço adiante, as igrejas e capelas mostram as suas velhas cinturas de pedra e os seus campanários esbeltos em que o sino tange com suavidade ao silvo da aragem e ao entreluzir da fé, como uma roldana funcionando no alto.

Nesse Sítio se criou e enraizou aquela penetrante e sugestiva lenda que ainda hoje vive e se transmite na tradição oral, chegando até aos recôncavos do distrito -- e até ultrapassando—os -- como o rumor esbatido duma onda oceânica. Tomou oorpo, consolidou—se e deu chamdoiro definitivo ao loeal rústico em que se encastoou -- ali e o lugar dos Quatro Irmãos, todos conhecem agora e todos conhecerão amanhã o lugar dos Quatro Irmãos, à margem da estrada antiga que vai desembocar em Guimarães...

Quatro grandes e escuros penedos, na sua configuração de dólmens ou tampas de sepultura, geraram há um rôr de anos o romanesco episódio em que foram protagonistas quatro irmāos——irmãos na amizade primeiro, no amor enlouquecido depois, na morte trágica por último. Irmãos para sempre no fundo da terra em que jazem e no esplendor imarcessível da lenda que se enflorou sobre os seus túmulos iguais. Uns diziam que o desfecho fora provocado por uma questão de águas, uma dessas arrastadas e envenenadas questiúnculas acesas, por amarga ironia, em torno de um veio de água que se infiltra e rega as culturas e as leiras nesta ou naquela direitura, que divide as propriedades no Minho mais visívelmente que os próprios marcos e que representa, sem o saber, a imagem da supremacia e da antigui­dade dos vínculos e dos direitos. Mas a grosseira interpretaçāo não logrou conquistar adeptos, não comoveu nem se projectou — e logo caiu por terra; abandonada e mesquinha. 

Ficou a outra -- essa pairou e ·prolongou o seu voo de alcion alvoraçado ―— porque essa tinha enfeitiçamento, era como um lilaseiro eternamente florido no cimo duma peanha. Foi nessa que acreditou o povo——foi dessa que ele gostou e de que veio a fazer o seu poema lírico. Eram quatro irmãos muito unidos, muito fiéis nos interesses e nos sentimentos, que nunca se haviam separado por rixas ou desavenças. Orgulhavamse uns dos outros, na íntima solidariedade ditada pelo sangue e pela longa convivência familiar. Exemplo de trabalhadores, de corajosos e leais lavradores com seus teres e haveres, crentes e estimados nas redondezas pelo seu trato afável, ninguém adivinharia o cruel desenlace dos seus destinos. Uma estrela deslumbrante tombou do céu para os atrair  e perder. E eles mesmo pelas suas mãos, com sanha brutal, metòdicamente, friamente, enraivados e desiludidos, se deixaram perder, se deixaram matar, -- Se mataram
na plena consciência dos seus actos suicidas e homicidas.

Que lhes sucedera? Muito pouco, mas tanto que chegou para trespassar as vidas e os tempos; os quatro apaixonaram-se pela mesma mulher e disputaram—na uma
tarde à paulada com feroz ódio. Ela charmava-se Maria do Canto, era doce e grácil como as cotovias, uma voz de veludo, um piso quase etéreo, uma alma angelical, aos domingos, quando amanhecia, com uma fina cauda de luz espalhando-se pelas cristas dos montes e descendo aos riachos e aos vales, já a encontravam a florir e a acender o altar dia capelinha para que o tio, o pároco da fregueguesia, viesse celebrar a missa.

A quem preferia? Nunca o chegou talvez a confessar -- e daí o mal. Nenhum dos quatro irmãos (mais parecidos que as quatro folhas do trevo) se sentia escolhido ou desprezado e assim nenhum cedia. Não se sabe se a Maria do Canto mantinha de propósito o equívoco, desnorteante a incerteza, —— por capricho bem feminino, pela vaidade de se sentir quatro vezes adulada ou pela atitude tácita de, não amando a valer nenhum, não se definir e esperar que tudo por si acabasse. O seu silêncio alimentava, porém, a lava e os irmãos ardiam e o amor e ciúme. Imputavam-se culpas e responsabilidades — já não podiam viver em comum adorando a mesma deusa. E a solução surgiu um dia para a contenda sentimental. Eram valentes jogadores de pau, varriam as feiras e as romarias num pronto, aceitavam todos reptos e quase sempre saíam vencedores nos golpes. Porque não haviam de jogar também o amor da Maria do Canto, tento mais que ela ainda não se declarara a nenhum? Estava livre para aceitar o triunfador. E o desafio foi então combinado. Seria longe da aldeia, sem testemunhas, sem quartel, no descampado, mesmo ao luco—fusco, em segredo, -- e até restar um único sobrevivente. Esse deporia no regaço da Maria do Canto os louros da glória e casaria com ela, em surprema recompensa.

O duelo começou, nuns terrenos à margem da estrada de Guimarães, antes de Sande. Duelo hercúleo, decisivo, selvagem, com as pauladas ecoando e ferindo sinistramente o espaço, na grande imobilidade da paisagem envolvente e nas densas sombras da noite que ia caindo. Não se pedia piedade nem se podia já desistir. Até ao fim! Até ao último!

Três dos contentores, apanhados em cheio na fronte logo ficaram mortos, numa poça de sangue, os olhos vidrados de espanto e de vingança desesperada, quase
lado a lado. O quarto, arfando, gravemente atingido, arrastando―se, ainda chegou à aldeia e durou umas horas. Então mandou chamar o abade e contou—lhe tudo, antes de m­orrer. O sacrifício fora inútil. O prior absolveu-o — ele ignorava o drama a que a sobrinha, aparentando indiferença, permitira um remate tão soberanamente trágico —— e fez depois enterrar os quatro irmãos no mesmo sítio da terrível luta, cobrindo—lhes as sepulturas cavadas com quatro lages enormes e quase iguais, a assinalar-se o perpetuar a fraternidade dos quatro apaixionados na vida, no amor, na morte e na lembrança dos caminhantes que as contemplam. E não se enganou.

Lenda ou romance com uns polvilhos de verdade, aquele lugar do furioso combate e das quatro pedras tumulares ficou a ser, desde esse longínquo dia, o lugar dos Quatro Irmãos, a memória dos quais decerto muita gente reza quando por ali passa...